sexta-feira, 23 de maio de 2014

A NATUREZA DA PESSOA JURÍDICA - BREVE ANÁLISE DE SUAS TEORIAS

No campo da teoria geral do Direito Civil, importante instituto é o da pessoa jurídica, assim compreendido o ente não natural a quem a lei confere personalidade jurídica, personalidade esta distinta da dos seus criadores ou integrantes. Assim, concebe-se a pessoa jurídica como sujeito autônomo de direitos e obrigações na órbita do Direito.
Como bem salienta Silvio Rodrigues[1], "a pessoa jurídica surge para suprir a própria deficiência humana".
E tal afirmação é integralmente correta, já que a necessidade de criação de pessoas jurídicas decorre do fato de que o ser humano é limitado e muitas vezes não consegue, por si só, alcançar os objetivos por ele visados. Portanto, como ser gregário que é, o homem une-se aos seus iguais para, em conjunto, atuarem na consecução de tais fins.
Para conferir maior força a tal união, bem como para suprir a brevidade da vida humana, cria-se a pessoa jurídica, com personalidade e patrimônio distintos dos de seus integrantes. Mesmo as fundações, que se constituem numa universalidade de bens ("universitas bonorum"), e não em um agrupamento de pessoas ("universitas personarum"), são, sem dúvida, entidades criadas para suprir as limitações inerentes ao ser humano e prevalecer no tempo, tanto que podem ser instituídas por testamento, nos termos dos artigos 62 e 1.799, III, do Código Civil, atuando, portanto, após a morte de seu instituidor, como extensão póstuma da vontade deste.
Assim, a pessoa jurídica (também denominada "pessoa moral" ou "pessoa artificial") é instituto jurídico de alto relevo e de importância ímpar ao Direito e à sociedade.
Todavia, discute-se doutrinariamente a natureza jurídica da pessoa jurídica. E tal questão, longeva, encontra-se ainda distante de pacificação, tendo em vista a multiplicidade de teorias sobre o tema.
Seria a pessoa jurídica simplesmente uma mera coletividade patrimonial? Seria uma ficção jurídica? Seria uma instituição? Ou alcançaria verdadeiramente a natureza de um ente real?
Como já adiantado, incontáveis são as teorias desenvolvidas sobre o assunto, de modo que me reservo a analisar tão somente as mais relevantes dentre elas, e de forma bastante sucinta:
(a) Teoria da Ficção: a primeira teoria que merece ser analisada, ante a sua importância, é a Teoria da Ficção, que nega real existência à pessoa jurídica, entendendo-a como mera entidade fictícia, cuja personalidade decorre de lei e da vontade de seus integrantes.
Para essa teoria, tão somente o homem, pessoa natural, possui real personalidade e pode ser sujeito de direitos, sendo a pessoa jurídica mera criação do próprio ser humano que, por ficção, lhe confere aparente vontade e capacidade para ser sujeito de direitos. Assim, a pessoa jurídica seria apenas um ente artificial, criado pelo ser humano, sem real existência e, portanto, sem real vontade ou personalidade autônomas. Para parcela mais extremada da doutrina ficcionista, ademais, a pessoa jurídica nada mais seria que uma forma de apresentação de relações jurídicas, e cuja personalidade não é propriamente sua, mas sim de seus integrantes (a exemplo dos sócios ou associados) ou, no caso das fundações, dos destinatários da atividade que constitui sua finalidade (a exemplo de enfermos, deficientes ou crianças).
É de se perceber que há certa precariedade na Teoria da Ficção, já que deixa de explicar uma série de situações, tais como a do litígio entre a  pessoa jurídica e algum (ou alguns) de seus integrantes. Ora, se a pessoa jurídica é tão somente um ente fictício sem real personalidade jurídica, decorrendo esta da vontade de seu membro ou instituidor, como entender a possibilidade de ter interesses conflitantes com os destes? É questão que fica sem resposta para a teoria ficcionista.
Aliás, para Caio Mário da Silva Pereira[2], é absurdo o entendimento, com relação às fundações, de que sujeitos de direitos são os destinatários beneficiados pela sua atividade, já que "a entidade age, adquire direitos e contrai obrigações, sem a menor participação de uns ou de outros, que são transitórios pela própria contingência de sua passagem, enquanto a atuação do ente moral é permanente e duradoura". Vai ainda além o saudoso civilista, afirmando que "se levarmos às últimas consequências a teoria, e imaginarmos uma fundação cujo objetivo seja a proteção e defesa de animais irracionais, ou teríamos de admitir que a sua existência é destituída de personalidade, ou que esta residiria naqueles, e em qualquer caso a doutrina conduziria ao absurdo".
Ademais, segundo ponderação feita por Silvio de Salvo Venosa[3], a Teoria da Ficção esbarra também no fato de os entes políticos (União, Estados, Municípios e Distrito Federal) serem pessoas jurídicas com personalidade jurídica. Conforme manifestação do referido autor, "Se o próprio Estado é uma pessoa jurídica, é de se perguntar quem o investe de tal capacidade. Respondem os adeptos dessa corrente que, como o Estado é necessidade primária e fundamental, tem existência natural. Contudo, isso não afasta a contradição da teoria".
Essas simples questões são aptas a demonstrar que a pessoa jurídica possui autonomia em relação a seu membro, criador ou beneficiário, o que lança por terra os postulados da Teoria da Ficção.
(b) Teoria da Propriedade Coletiva (ou Teoria da Equiparação): partindo da premissa outrora consagrada de que não não se concebe pessoa jurídica sem um conjunto de bens que a componha, surgiu a Teoria da Propriedade Coletiva, segundo a qual a pessoa jurídica nada mais é que uma massa patrimonial (um acervo de bens) de propriedade de vários indivíduos, em coletividade, e que não se confunde com o patrimônio individual de cada um. Tal teoria reduz a pessoa jurídica à qualidade de coisa dominada, conjuntamente, por um grupo de pessoas naturais, ou seja, iguala pessoa jurídica a uma coletividade de bens.
Não obstante essa teoria tenha sucesso ao explicar a distinção entre o patrimônio da pessoa jurídica e o patrimônio individual de seus integrantes ou criadores, é também falha.
Inicialmente, posto que seu fundamento é desprovido de verdade: não é pressuposto de criação de uma pessoa jurídica a existência de um conjunto de bens que a componha. Com exceção das fundações (que, pela própria natureza, constituem-se a partir de uma universalidade de bens), é absolutamente possível a criação de pessoa jurídica pela mera união de pessoas, sem qualquer integração de bens. Exemplo simples é o das associações de finalidade meramente intelectual, constituída do agrupamento de pessoas com o intuito de, por exemplo, debater ideias, sem qualquer interesse patrimonial (e, portanto, sem constituição de acervo patrimonial).
Em segundo lugar, porque não explica a personalidade jurídica e a aquisição de direitos e obrigações pela pessoa jurídica, já que bens por si só, ainda que agrupados, não têm personalidade e não são sujeitos de direito. Assim, como explicar, por exemplo, a responsabilização civil de meras coisas? Como explicar a celebração de um contrato por um simples agrupamento de bens? A Teoria da Propriedade Coletiva, de fato, não explica.
Na lição clara de Maria Helena Diniz[4], a Teoria da Propriedade Coletiva "é inaceitável porque eleva os bens à categoria de sujeito de direitos e obrigações, confundindo pessoas com coisas".
Por fim, tal teoria igualmente não explica a autonomia da vontade da pessoa jurídica face à vontade de seus membros ou instituidores. Aliás, sequer explica a vontade da pessoa jurídica, já que coisas, mesmo coletivas, não possuem qualquer vontade.
(c) Teoria da Instituição: segundo Silvio Rodrigues[5], apregoa tal teoria que "uma instituição preexiste ao momento em que a pessoa jurídica nasce". Para a Teoria Institucionalista, a personalidade jurídica da pessoa moral decorre do fato de esta, com o agrupamento de pessoas ou bens, se institucionalizar, como ente organizado ao atendimento de fins sociais comuns. Assim, o ordenamento jurídico confere personalidade à pessoa jurídica em virtude de seu caráter institucional, fundamentado no interesse social comum.
Parte da doutrina entende pela insuficiência de tal teoria, a exemplo do entendimento de Caio Mário da Silva Pereira[6], segundo o qual "além de não oferecer um critério justificativo da atribuição de personalidade, que é precisamente o que constitui o ponto fundamental da controvérsia, a teoria institucionista não encontra explicação para a concessão de personalidade jurídica às sociedades que se organizam sem a finalidade de prestar um serviço ou preencher um ofício".
Todavia, há também parcela literária que aclama a referida teoria, a exemplo de Maria Helena Diniz[7], para quem "essa teoria é a que melhor atende à essência da pessoa jurídica, por estabelecer, com propriedade, que a pessoa jurídica é uma realidade jurídica".
(d) Teoria da Realidade Objetiva (ou Orgânica): para tal teoria, a pessoa jurídica, originada da vontade pública ou privada, é entidade realmente viva, e cuja existência, vontade e personalidade são distintas das de seus membros ou criadores. É a pessoa jurídica, portanto, real sujeito de direitos e obrigações.
Conforme preceitua Silvio Rodrigues[8], "a idéia básica dessa teoria é que as pessoas jurídicas, longe de serem mera ficção, são uma realidade sociológica, seres com vida própria, que nascem por imposição das forças sociais".
Trata-se de teoria que confere a devida autonomia à vontade e à atuação da pessoa jurídica, em relação às de seus integrantes ou instituidores, já que entende a pessoa jurídica como ente vivo novo e diferente de seus indivíduos componentes ou criadores.
Assim, interessante é mencionar a analogia indicada por Caio Mário da Silva Pereira[9], segundo a qual "na pessoa jurídica devem distinguir-se a ideia que se manifesta e os órgãos que a exprimem, em perfeita similitude com a pessoa natural, que também manifesta sua vontade através de seus órgãos".
(e) Teoria da Realidade Técnica: por fim, cabe analisar a Teoria da Realidade Técnica, que, igualmente realista, se constitui em desdobramento da Teoria da Realidade Objetiva.
Assim, também a Teoria da Realidade Técnica apregoa que a pessoa jurídica é ente de existência real (e não mera ficção) que possui vida própria, autônoma à de seus integrantes ou criadores, havendo diversidade também entre suas personalidades jurídicas e vontades.
Todavia, essa teoria entende que a personalidade jurídica conferida às pessoas jurídicas é técnica, ou, como ensina Silvio Rodrigues[10], "um expediente de ordem técnica, útil para alcançar indiretamente alguns interesses humanos".
Assim, no entender da Teoria da Realidade Técnica, consiste a pessoa jurídica em ente real, com autonomia de personalidade, vontade e atuação, mas que, em seu cerne, visa à satisfação de interesses de pessoas naturais.
Consoante lição de Caio Mário da Silva Pereira[11], adepto da doutrina da Realidade Técnica, "realizando os interesse humanos ou as finalidades sociais que se propõem, as pessoas jurídicas procedem, no campo do direito, como seres dotados de ostensiva autonomia".
Dá-se, portanto, a criação da pessoa jurídica pelo fato de esta, em última análise, visar ao atendimento de interesses humanos (ou seja, os atos praticados pelas pessoas jurídicas interessam, verdadeiramente, às pessoas naturais), motivo pelo qual se confere a ela a personalidade jurídica. Assim, uma vez criada a pessoa jurídica pelo interesse do homem, esta adquire autonomia face às pessoas naturais que a criaram ou que a integram.
- A natureza da pessoa jurídica no Direito pátrio: como encerramento da presente análise, cabe apontar, de acordo com a literatura pátria, qual a teoria adotada pelo Direito brasileiro acerca da natureza jurídica das pessoas morais. E até mesmo nesse ponto há divergência, não obstante seja pacífico o entendimento pela adoção da concepção realista.
Parcela da doutrina nacional, com arrimo no artigo 45 do Código Civil, defende que o Direito brasileiro incorporou a concepção adotada pela Teoria da Realidade Objetiva. Nesse sentido, o entendimento de Silvio de Salvo Venosa[12], consoante o qual: "para nosso direito positivo, a pessoa jurídica tem realidade objetiva, porque assim está estabelecido na lei. Diz o art. 45 do Código Civil que 'começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado' com a inscrição do ato constitutivo no registro competente, e o art. 20 do antigo diploma legal rezava que 'as pessoas jurídicas têm existência distinta da dos seus membros'. E o art. 21 enunciava as hipóteses em que 'termina a existência da pessoa jurídica'".
Entretanto, há também parte da literatura jurídica que entende pela adoção da Teoria da Realidade Técnica, a exemplo do civilista Flávio Tartuce[13], que, também com fundamento no artigo 45 do Código Civil, confere-lhe interpretação diversa, entendendo que tal dispositivo, "na verdade, ressalta a tese de que o Código Civil adota a teoria da realidade técnica, uma vez que a pessoa jurídica, para existir, depende do ato de constituição dos seus membros, o que representa um exercício da autonomia privada".
Com a devida vênia da doutrina contrária, imperioso é entender pela adoção da Teoria da Realidade Técnica, principalmente tendo em vista o fato de que o ordenamento jurídico pátrio estipula, de forma implícita, que a pessoa jurídica deve cumprir sua função social, o que não deixa de consistir em interesse humano e finalidade social fundamentadores da criação da pessoa jurídica, e que culminam por exigir que lhe seja conferida personalidade jurídica.

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[1] RODRIGUES, Silvio. Direito civil, volume 01 - parte geral. 34ª edição, 6ª tiragem. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 86.
[2] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, volume I - introdução ao direito civil e teoria geral do direito civil. Rev. e atual. Maria Celina Bodin de Moraes. 26ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 255-256.
[3] VENOSA, Silvio de Salvo. Código civil interpretado. 2ª edição. São Paulo: Atlas, 2011, p. 45.
[4] DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro, volume 01 - teoria geral do direito civil. 29ª edição. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 265.
[5] RODRIGUES, Silvio. Direito civil, volume 01 - parte geral. 34ª edição, 6ª tiragem. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 88.
[6] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, volume I - introdução ao direito civil e teoria geral do direito civil. Rev. e atual. Maria Celina Bodin de Moraes. 26ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 257.
[7] DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro, volume 01 - teoria geral do direito civil. 29ª edição. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 265.
[8] RODRIGUES, Silvio. Direito civil, volume 01 - parte geral. 34ª edição, 6ª tiragem. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 88.
[9] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, volume I - introdução ao direito civil e teoria geral do direito civil. Rev. e atual. Maria Celina Bodin de Moraes. 26ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 257-258.
[10] RODRIGUES, Silvio. Direito civil, volume 01 - parte geral. 34ª edição, 6ª tiragem. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 88. 
[11] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, volume I - introdução ao direito civil e teoria geral do direito civil. Rev. e atual. Maria Celina Bodin de Moraes. 26ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 258.
[12] VENOSA, Silvio de Salvo. Código civil interpretado. 2ª edição. São Paulo: Atlas, 2011, p. 47. 
[13] TARTUCE, Flávio. Direito civil, volume 01 - lei de introdução e parte geral. 6ª edição. São Paulo: Método, 2010, p. 235.


NOTA DE APRESENTAÇÃO

Saudações, nobres colegas do ramo jurídico!

É com orgulho que apresento a nova página virtual "Ata Jurídica", resultado de alguns meses de amadurecimento acerca da viabilidade da criação de um sítio eletrônico para a publicação de textos jurídicos e o debate acerca dos mesmos.
Honestamente, sou acostumado a redigir artigos científicos com todas as formalidades a eles inerentes, conforme regras orientadoras da ABNT.
Todavia, percebi que, muitas vezes, a menor formalidade de uma página no modelo blog, sua maior publicidade e a possibilidade de participação ativa dos leitores são elementos necessários a que seja conferido maior dinamismo ao conteúdo jurídico.
Mais importantes que os próprios textos postados na página são os debates realizados sobre os assuntos tratados em tais textos. Ora, é longe de qualquer dúvida que a contraposição de diferentes pontos de vista em muito enriquece o aprendizado.
Com o presente sítio eletrônico, portanto, buscarei fazer a postagem de textos jurídicos com alguma frequência, sendo seu conteúdo público e totalmente aberto a debates, desde que estes se deem com eticidade, urbanidade e respeito.
Cumpre adiantar, de forma expressa e clara, que nesta página virtual não será admitida a veiculação de ofensas, agressões verbais ou quaisquer outras condutas moral ou legalmente reprováveis. É importante consignar que serão excluídos todos os comentários que desrespeitarem essa regra e que, a depender da gravidade da situação concreta, poderão ser tomadas as medidas judiciais cabíveis.
Quanto ao conteúdo da página, vale esclarecer que, por uma questão de afinidade, os textos aqui publicados terão como assuntos principais temas ligados ao Direito Civil, ao Direito Processual Civil e ao Direito Administrativo. Trata-se, porém, de mera preferência, que não exclui a possibilidade de publicação de textos com temas relacionados a outros ramos do Direito.
No mais, resta apenas agradecer a presença do insigne leitor, e desejar que este sítio eletrônico seja efetivamente útil na difusão e no aprimoramento do conhecimento jurídico.

Atenciosamente.


Augusto Cury.