sexta-feira, 25 de julho de 2014

FAZENDA PÚBLICA REVEL - A PRESUNÇÃO DE VERACIDADE DAS ALEGAÇÕES DO AUTOR

1. CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE A REVELIA

No processo de conhecimento, por força dos princípios do contraditório e da ampla defesa (consagrados como garantias fundamentais no inciso LV do artigo 5º da Constituição Federal), apresentada a petição inicial pelo autor, e admitida esta pelo juiz, determina-se a citação do réu para que este possa, em determinado prazo, apresentar sua resposta, o que pode fazer por meio da oferta de contestação (artigos 300 a 303 do Código de Processo Civil), da apresentação de exceções (como a exceção de incompetência relativa e as exceções de impedimento ou de suspeição do juiz - artigos 304 a 314 do Código de Processo Civil), de impugnações (a exemplo da impugnação ao valor da causa e da impugnação à justiça gratuita - artigo 261 do Código de Processo Civil e artigo 4º da Lei nº 1.060/1950), ou, ainda, mediante reconvenção (artigos 315 a 318 do Código de Processo Civil).
Entretanto, a par dos demais instrumentos processuais de resposta do réu, a peça de defesa mais completa é a contestação, posto ser apta a impugnar as alegações de mérito (fáticas e jurídicas) feitas pelo autor na petição inicial, bem como as matérias processuais elencadas no artigo 301 do Código de Processo Civil[1].
Tendo em vista a elevada importância desse meio de defesa do réu e o fato de que sua apresentação demonstra o intuito do réu em participar do processo e colaborar com o Poder Judiciário no conhecimento do conflito, a ausência de contestação gera ao réu uma consequência: a revelia[2].
Como bem salientam MARINONI e ARENHART[3]:
É, pois, importante para o Estado a colaboração dos sujeitos na reconstrução dos fatos da causa (art. 339 do CPC), sendo que a recusa de uma das partes em fazê-lo representa (mais do que um prejuízo para si) séria ameaça aos próprios objetivos da jurisdição estatal. Em vista disso é que se concebe o instituto da revelia, como forma de punição ao réu que se nega a colaborar com o Estado, na consecução de seus fins no processo.
Para o Direito brasileiro, a revelia - disciplinada pelos artigos 319 a 322 do Código de Processo Civil - consiste na ausência de apresentação de contestação pelo réu (conforme se depreende do artigo 319 do referido Código[4]).
Desse modo, a revelia pode ocorrer pela não apresentação da contestação, ou mesmo pela sua apresentação intempestiva (o que equivale à não oferta da contestação, devido ao fato de o prazo para contestar ser peremptório).
Importa consignar que no rito comum sumário, em vista do fato de que deve o réu apresentar sua contestação na oportunidade da audiência de conciliação (na hipótese de não ser obtida uma transação), a revelia se opera em virtude do não comparecimento do réu à referida audiência, consoante artigo 277, §2º, da Lei dos Ritos[5]. Tal disposição, apesar de específica, quer dizer o mesmo que a regra do artigo 319: revelia é a ausência de contestação pelo réu.
Como não poderia ser diferente, levando-se em consideração que é a contestação o meio de que o réu dispõe para impugnar a matéria fática e jurídica alegada pelo autor na exordial, bem como ante o fato de a ausência dessa defesa demonstrar a falta de intuito do réu em participar do processo e nele colaborar, a revelia gera alguns efeitos.
De forma bem sintética, são três os referidos efeitos, a saber:
(a) induz-se ao julgamento antecipado da lide, devendo o juiz, em sentença, conhecer diretamente do pedido (artigo 330, II, do Código de Processo Civil[6]), devendo-se aqui ressalvar que não haverá julgamento antecipado da lide se o juiz, mesmo face à ausência de contestação, entender pela necessidade de produção de provas, caso em que haverá instrução probatória; 
(b) caso o réu não tenha patrono constituído nos autos, correm-se os prazos a partir da publicação de cada ato judicial, independentemente de intimação daquele (artigo 322 do Código de Processo Civil[7]). Importante é tornar claro que este efeito apenas ocorre se o réu não possuir patrono constituído nos autos. Possuindo-o, continuará a ser intimado dos atos processuais, na pessoa de seu patrono.
(c) reputam-se verdadeiros os fatos alegados pela parte autora (artigo 319 do Código de Processo Civil). A presunção de veracidade das alegações, quando revel o réu (ou seja, quando este não apresenta contestação), decorre do ônus da impugnação especificada, consagrado no artigo 302 do Código de Processo Civil[8], e segundo o qual o réu, em contestação, tem o encargo de impugnar precisamente cada um dos fatos descritos pelo autor na petição inicial, a fim de tornar controvertidos esses fatos, para que sejam, posteriormente, objeto de prova. O fato não impugnado especificamente torna-se incontroverso, presumindo-se, assim, sua veracidade. Assim, não ofertada a contestação (ou ofertada intempestivamente), fato algum é objetado, presumindo-se, pois, sua veracidade.
Este último efeito - a presunção de veracidade dos fatos alegados pelo autor - é o mais importante e gravoso dentre os efeitos da revelia, e comporta algumas exceções legais, previstas no artigo 320 do Código de Processo Civil[9].
Consoante o mencionado dispositivo, não se opera o efeito da presunção de veracidade, ainda que revel o réu:
(i) se, havendo pluralidade de réus, algum deles contestar a ação. Deve, nesse caso, a matéria da contestação ser comum aos demais litisconsortes passivos, pois, como bem ponderam MARINONI e ARENHART[10], "quanto aos fatos que dizem respeito apenas a um dos litisconsortes, o oferecimento de contestação por seu par não pode operar qualquer efeito para o litigante revel");
(ii) se o litígio versar sobre direitos indisponíveis, consistentes naqueles direitos de que a parte não pode dispor, renunciar ou transigir, seja por sua própria natureza (indisponibilidade absoluta) ou em virtude do titular de tal direito (indisponibilidade relativa);
(iii) se a petição inicial não estiver acompanhada do instrumento público que a lei considere indispensável à prova do ato. Trata-se, pois, da situação em que o fato ou ato jurídico, em vista de sua natureza ou da solenidade imposta ao seu aperfeiçoamento, apenas pode ser comprovado por instrumento público específico, citando-se, por exemplo, o casamento celebrado no Brasil (cuja comprovação, salvo casos excepcionalíssimos, se dá por meio da certidão do registro de casamento - artigo 1.543 do Código Civil) e o falecimento (que, salvo situações de extrema exceção, deve ser provado por meio da certidão de registro de óbito - artigo 77 da Lei nº 6.015/1973). Em vista de tal solenidade exigida, não se pode provar o ato por qualquer outro meio, e, menos ainda, mediante presunção. Daí não se aplicar a presunção de veracidade na ausência do referido documento.
Feitas essas considerações iniciais sobre a revelia, seus efeitos e as exceções à presunção de veracidade dos fatos, é imperioso, antes de ingressar na problemática principal do presente texto, e para fins didáticos, fixar-se o conceito de Fazenda Pública. 


2. CONCEITO DE FAZENDA PÚBLICA

Fazenda Pública, de uma forma ampla, é o termo processual utilizado para se referir à Administração Pública em juízo, sendo pacífico na doutrina e na jurisprudência que tal termo abrange a Administração Pública direta, autárquica e fundacional (ou seja, as pessoas jurídicas de Direito Público).
Assim, incluem-se no conceito de Fazenda Pública as pessoas políticas (entes da federação: União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios), as autarquias (pessoas jurídicas de direito público, criadas pelos entes da federação mediante lei específica) e as fundações públicas de Direito Público (também chamadas de fundações autárquicas, que são as fundações regidas pelo direito público, criadas pelos entes da federação mediante lei específica).
Segundo a lição de MARINONI e ARENHART[11]:
A este regime estão sujeitas todas as entidades compreendidas no conceito de Fazenda Pública, nos três níveis da federação. Assim, submeter-se-ão a esta disciplina a União, os Estados, os Municípios, o Distrito Federal e suas respectivas autarquias e fundações de direito público. Excluem-se deste regime as empresas públicas, as sociedades de economia mista e as fundações públicas de direito privado.
A Fazenda Pública (como representação processual da Administração Pública), por força do princípio da supremacia do interesse público, possui muitas prerrogativas, sendo a mais importante dentre elas a impenhorabilidade de seus bens, o que confere à Fazenda Pública certas peculiaridades procedimentais (a exemplo do pagamento mediante o regime de precatórios).
Aliás, há entendimentos doutrinários e jurisprudenciais no sentido de que também as empresas estatais (empresas públicas e sociedades de economia mista – pessoas jurídicas de Direito Privado criadas pelos entes da federação, mediante registro de ato constitutivo, e cuja criação deve ser permitida por lei) e as fundações públicas de Direito Privado (fundações criadas pelos entes da federação e regidas pelo Direito Privado, cuja criação não é feita diretamente por lei, mas apenas permitida nesta, exigindo-se o registro de seus atos constitutivos), quando prestadoras de efetivo serviço público (ou seja, quando não exercerem mera atividade econômica), integram o conceito de Fazenda Pública para fins de lhe serem aplicáveis as peculiaridades procedimentais destinadas à Fazenda Pública, o que se justifica pelo fato de que seu regime jurídico, apesar de ser de Direito Privado, possui número muito elevado de derrogações, o que lhes aproxima muito de um regime de Direito Público, conferindo-lhes também grande número de prerrogativas. Entende-se, aliás, que mesmo os bens de tais empresas estatais são impenhoráveis, posto que a penhora deles resultaria em ofensa ao princípio da continuidade do serviço público.
Nesse sentido, as palavras de THEODORO JÚNIOR[12], ao tratar da execução contra a Fazenda Pública:
Permanecem, de outro lado, sujeitas ao regime especial dos arts. 730 e 731 as empresas públicas e as sociedades de economia mista instituídas, não para a exploração da atividade econômica própria das empresas privadas, mas para prestar serviço público da competência da União Federal, como é o caso da empresa Brasileira de Correios e Telégrafos. Empresas dessa natureza o STF equipara à Fazenda Pública, excluindo-as do alcance do art. 173, § 1º, da Constituição, e, no campo do processo, as submete ao regime executivo dos precatórios, por força do art. 100 da mesma lei fundamental.
A inclusão dessas pessoas jurídicas de Direito Privado no conceito de Fazenda Pública, entretanto, ainda é vexata quaestio, de modo que, no presente texto, se entenderá por Fazenda Pública tão somente a Administração Pública direta, autárquica e fundacional, regida pelo Direito Público, quando em juízo. 


3. FAZENDA PÚBLICA REVEL E APLICAÇÃO DA PRESUNÇÃO DE VERACIDADE 

Feitas as devidas considerações gerais acerca da revelia e verificado o conceito de Fazenda Pública, cabe agora analisar a questão a que o presente texto se propõe.
Conforme visto, Fazenda Pública é a nomenclatura processual da Administração Pública. É a Administração Pública em juízo.
Como qualquer sujeito de direitos, a Fazenda Pública pode estar em juízo na condição de autora (veiculando uma pretensão contra outrem) ou de ré (defendendo-se de uma pretensão veiculada contra ela).
Assim, em vista da possibilidade de litigar como ré, também há a possibilidade de, não apresentando tempestivamente a contestação, se tornar revel, ficando, em tese, sujeita a seus efeitos.
É pacífico que a Fazenda Pública se possa sujeitar a dois dos efeitos da revelia: o julgamento antecipado da lide (salvo quando o juiz entender pela necessidade de produção de provas) e o decurso de prazos independentemente da intimação. Entretanto, é de se observar que este último efeito, não obstante possível, muito dificilmente ocorrerá, posto que a Fazenda Pública, como regra, é patrocinada em juízo pela respectiva Procuradoria, de modo a sempre estar representada.
Porém, apesar de pacífica a aplicação desses dois primeiros efeitos da revelia, instala-se certa divergência no que concerne ao efeito de presunção de veracidade das alegações da parte autora, quando é ré a Fazenda Pública.
O entendimento atualmente dominante é no sentido de que à Fazenda Pública revel não se aplica o efeito da presunção de veracidade das alegações do autor, mesmo não havendo qualquer dispositivo legal que confira expressamente à Fazenda Pública essa exceção ao efeito do artigo 319 do Código de Processo Civil.
Nesse sentido, vários julgados do Superior Tribunal de Justiça, dentre os quais transcrevo dois:
"PROCESSUAL CIVIL. TRIBUTÁRIO. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. OMISSÃO CONFIGURADA. ISS. LISTA DE SERVIÇOS (DL 406/68). TAXATIVIDADE. INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA. POSSIBILIDADE. SERVIÇOS DE PRATICAGEM. PRECEDENTES DO STJ. EFEITOS DA REVELIA EM FACE DA FAZENDA PÚBLICA. ARTS. 319 E 320 DO CPC. 1. Os efeitos da revelia não se operam integralmente em face da Fazenda Pública, posto indisponíveis os interesses em jogo, na forma do art. 320, II, do CPC. Precedentes do STJ: REsp 635.996/SP, DJ 17.12.2007 e REsp 541.239/DF, DJ 05.06.2006." (STJ - EDcl no REsp: 724111 RJ 2005/0018406-9, Relator: Ministro LUIZ FUX, Data de Julgamento: 17/12/2009, T1 - PRIMEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 12/02/2010).
"PROCESSUAL CIVIL. TRIBUTÁRIO. OFENSA AO ART. 535 DO CPC. INOCORRÊNCIA. IPI. CRÉDITO-PRÊMIO. DECRETOS-LEIS NºS 491/69, 1.724/79, 1.722/79, 1.658/79 E 1.894/81. PRESCRIÇÃO QÜINQÜENAL. EXTINÇÃO DO BENEFÍCIO. (...) 4. Revelia em primeiro grau da Fazenda pública a qual, não obstante, não operou integralmente os seus efeitos, posto indisponíveis os interesses em jogo, na forma do art. 320, II, do CPC que assim dispõe: "Art. 320 - A revelia não induz, contudo, o efeito mencionado no artigo antecedente: II - se o litígio versar sobre direitos indisponíveis; (...)". (STJ, Relator: Ministro LUIZ FUX, Data de Julgamento: 09/11/2005, S1 - PRIMEIRA SEÇÃO).
Assim também é a manifestação de ERNANE FIDÉLIS DOS SANTOS[13], para quem:
Há direitos que, por si mesmos, não são indisponíveis, mas, conforme seja seu titular, adquirem indisponibilidade; indisponibilidade relativa. Tal ocorre com os direitos dos incapazes e das pessoas jurídicas de direito público. O incapaz não pode confessar; tampouco seu representante ou assistente. O mesmo se diga com relação à pessoa jurídica de direito público. Mas, no que se relaciona com os efeitos da revelia e com a presunção de verdade dos fatos não impugnados, a justificativa de não admiti-los encontra-se exclusivamente no interesse público que sobrepuja o particular na proteção de tais direitos.
Como se pode perceber, tal corrente de pensamento tem por arrimo o artigo 320, II, do Código de Processo Civil, segundo o qual a revelia não induz à referida presunção de veracidade “se o litígio versar sobre direitos indisponíveis”.
Conforme tal entendimento, pelo fato de a Fazenda Pública atuar na preservação do interesse público, em supremacia sobre o particular (princípio da supremacia do interesse público, consagrado pela doutrina e pela jurisprudência nacionais), os direitos que debate em juízo seriam indisponíveis, motivo pelo qual não se deve aplicar o efeito previsto no artigo 319 da Lei dos Ritos.
Apregoa o princípio da supremacia do interesse público que deve este interesse prevalecer sobre o interesse privado. Daí se concederem à Administração Pública uma série de prerrogativas sobre o particular.
Ocorre que, quando se trata de interesse público e de supremacia do interesse público, é imperioso proceder a uma distinção entre o interesse público primário e o interesse público secundário.
Interesses públicos primários, segundo a lição de CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO[14], “são os interesses da coletividade como um todo”, ou seja, são aqueles autênticos interesses da sociedade como um todo, que devem ser, ao máximo, preservados, e que fundamentam a supremacia e as prerrogativas do Estado sobre o particular. O interesse público primário é, indiscutivelmente, indisponível, já que, como bem assenta HELY LOPES MEIRELLES[15], “a Administração Pública não pode dispor desse interesse geral, da coletividade”.
Por outro lado, existem os interesses públicos secundários, que, conforme ensinamento do mesmo jurista[16], são aqueles “que o Estado (pelo só fato de ser sujeito de direitos) poderia ter como qualquer outra pessoa, isto é, independentemente de sua qualidade de servidor de interesses de terceiros: os da coletividade”. E prossegue ensinando que são “interesses apenas ‘seus’, enquanto pessoa, enquanto entidade animada do propósito de despender o mínimo de recursos e abarrotar-se deles ao máximo”.
Os interesses públicos secundários consistem, pois, em interesses não da coletividade, mas da máquina estatal, ou seja, do próprio Estado, enquanto ente personificado e sujeito de direitos. Tais interesses, portanto, não são revestidos da natureza de indisponibilidade, e não podem ser fundamento à supremacia do Poder Público sobre o particular, não fundamentando, pois, qualquer prerrogativa do Estado, salvo quando coincidentes com o interesse público primário.
Dessa forma, apenas se pode haver a aplicação da supremacia do interesse público e da indisponibilidade desse mesmo interesse quanto tal for o interesse público primário - ou seja, o interesse da coletividade, da sociedade como um todo -. Nunca, porém, quando se tratar meramente do interesse público secundário, do Estado como sujeito autônomo de direitos.
Nesse sentido, aliás, o ilustre administrativista CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO[17]:
Por isso os interesses secundários não são atendíveis senão quando coincidirem com interesses primários, únicos que podem ser perseguidos por quem axiomaticamente os encarna e representa. Percebe-se, pois, que a Administração não pode proceder com a mesma desenvoltura e liberdade com que agem os particulares, ocupados na defesa das próprias conveniências, sob pena de trair sua missão própria e sua própria razão de existir.
Em face do exposto, fácil é ver-se que as prerrogativas inerentes à supremacia do interesse público sobre o interesse privado só podem ser manejadas legitimamente para o alcance de interesses públicos; não para satisfazer apenas interesses ou conveniências tão-só do aparelho estatal, e muito menos dos agentes governamentais.
Cabe ainda verificar o ensinamento do eterno mestre HELY LOPES MEIRELLES[18], para quem:
A primazia do interesse público sobre o privado é inerente à atuação estatal e domina-a, na medida em que a existência do Estado justifica-se pela busca do interesse geral, ou seja, da coletividade; não do Estado ou do aparelhamento Estado.
No mesmo sentido, quanto à indisponibilidade ou não do direito debatido pela Fazenda Pública, se manifestam MARINONI e MITIDIERO[19], que asseveram:
Direito indisponível é aquele que não se pode renunciar ou alienar. Os direitos da personalidade (art. 11, CPC) e aqueles ligados ao estado da pessoa são indisponíveis. O direito da Fazenda Pública, quando arrimado em interesse público primário, também o é. O direito da Fazenda Pública, com esteio no interesse público secundário não é indisponível.
Perceba-se, pois, que, apesar dos posicionamentos em contrário, nem sempre o direito debatido pela Fazenda Pública é indisponível, havendo situações em que, por litigar o Estado tão somente na defesa de um interesse público secundário, não há qualquer indisponibilidade em tal direito.
Exemplo claro em que falta o interesse público primário, restando tão somente o secundário, é a lide em que se debate a cobrança de um direito (a exemplo de um adicional, uma gratificação ou um reajuste salarial) que o Estado indevidamente deixou de pagar a servidor seu, causando-lhe prejuízo. Não há dúvidas de que a atuação do Estado, nessa hipótese, não tem por base o interesse público primário, já que não se pode conceber como interesse da sociedade que um servidor público deixe de receber o que lhe é de direito, restando prejudicado em virtude de tal conduta ilícita por parte do Estado. A Fazenda Pública, neste caso, litiga em juízo tão somente no interesse público secundário (disponível, portanto), de modo que, tornando-se revel, imperioso é que se lhe aplique o efeito da presunção de veracidade das alegações do autor. 
Outro exemplo é a hipótese em que o Poder Público atua em regime de Direito Privado, celebrando contratos civis com particulares, mormente quando em benefício do particular contratante. Se dessa relação decorrer um litígio judicial em que a Fazenda Pública figure como ré, e tornando-se esta revel, deve ser aplicado o efeito da presunção de veracidade, tendo em vista a disponibilidade do direito debatido.
Acerca dessa última hipótese, há, inclusive, julgado do Superior Tribunal de Justiça consolidando o entendimento no sentido de incidir o efeito da presunção de verdade:
"DIREITO CIVIL, ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE COBRANÇA AJUIZADA EM FACE DE MUNICÍPIO. CONTRATO DE DIREITO PRIVADO (LOCAÇÃO DE EQUIPAMENTOS COM OPÇÃO DE COMPRA). AUSÊNCIA DE CONTESTAÇÃO. EFEITOS MATERIAIS DA REVELIA. POSSIBILIDADE. DIREITOS INDISPONÍVEIS. INEXISTÊNCIA. PROVA DA EXISTÊNCIA DA OBRIGAÇÃO.DOCUMENTAÇÃO EXIBIDA PELO AUTOR. PROVA DO PAGAMENTO. NÃO OCORRÊNCIA. ÔNUS QUE CABIA AO RÉU. PROCEDÊNCIA DO PEDIDO. CONCLUSÃO A QUE SE CHEGA INDEPENDENTEMENTE DA REVELIA. 1. Os efeitos materiais da revelia não são afastados quando, regularmente citado, deixa o Município de contestar o pedido do autor, sempre que não estiver em litígio contrato genuinamente administrativo, mas sim uma obrigação de direito privado firmada pela Administração Pública (...)". (STJ, Relator: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de Julgamento: 06/11/2012, T4 - QUARTA TURMA).
Cabe mencionar também o ensinamento de RIOS GONÇALVES[20], segundo o qual:
Parece-nos que do fato de a Fazenda Pública ser titular de um interesse não resulta que este seja indisponível. O interesse público não se confunde com o da Fazenda. Se o objeto da ação em que ela participa for de cunho patrimonial e não disser respeito a interesse público, não haverá óbice à aplicação do art. 319 do CPC.
Por fim, com relação ao tema, a Justiça do Trabalho possui, já há tempos, jurisprudência mais avançada, permitindo expressamente a aplicação do efeito da presunção de veracidade contra a Fazenda Pública, consoante Orientação Jurisprudencial nº 152 da Seção de Dissídios Individuais I do Tribunal Superior do Trabalho:
OJ nº 152, SDI-1 - REVELIA. PESSOA JURÍDICA DE DIREITO PÚBLICO. APLICÁVEL. (ART. 844 DA CLT) (inserido dispositivo) - DJ 20.04.2005. Pessoa jurídica de direito público sujeita-se à revelia prevista no artigo 844 da CLT.

4. CONCLUSÃO

Ex positis, conclui-se que o direito debatido pela Fazenda Pública ré pode ou não ser indisponível, motivo pelo qual, sendo esta revel, nem sempre lhe deve ser concedida a prerrogativa de não se operar o efeito da presunção de veracidade das alegações do autor.
Tal prerrogativa deve ser reservada tão somente às situações em que a Fazenda Pública revel atuar em juízo no resguardo do interesse público primário, posto apenas este ser indisponível.
Entretanto, quando atuar em defesa de mero interesse público secundário, não há por que se deixar de aplicar à Fazenda Pública revel o efeito da presunção de veracidade das alegações do autor, posto não existir a indisponibilidade do direito exigida pelo artigo 320, II, do Código de Processo Civil.
______________________________________________________
[1] "Art. 300. Compete ao réu alegar, na contestação, toda a matéria de defesa, expondo as razões de fato e de direito, com que impugna o pedido do autor e especificando as provas que pretende produzir".
"Art. 301. Compete-lhe, porém, antes de discutir o mérito, alegar: I- inexistência ou nulidade da citação; II- incompetência absoluta; III- inépcia da petição inicial; IV- perempção; V- litispendência; VI- coisa julgada; VII- conexão; VIII- incapacidade da parte, defeito de representação ou falta de autorização; IX- convenção de arbitragem; X- carência de ação; XI- falta de caução ou de outra prestação, que a lei exige como preliminar. §1º. Verifica-se a litispendência ou a coisa julgada, quando se reproduz ação anteriormente ajuizada. §2º Uma ação é idêntica à outra quando tem as mesmas partes, a mesma causa de pedir e o mesmo pedido. §3º Há litispendência, quando se repete ação, que está em curso; há coisa julgada, quando se repete ação que já foi decidida por sentença, de que não caiba recurso. §4º Com exceção do compromisso arbitral, o juiz conhecerá de ofício da matéria enumerada neste artigo".
[2] Quanto à nomenclatura do instituto, a doutrina faz a seguinte observação: "Não se fez, no Código de Processo Civil brasileiro, distinção entre revelia e contumácia. À contumácia a doutrina dominante dava sentido mais generalizado, a ponto de abranger também o não-comparecimento do autor a qualquer ato do processo, quando se fizer necessário." [SANTOS, Ernani Fidélis dos. Manual de direito processual civil, volume 01 - processo de conhecimento. 6ª edição. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 373].
[3] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de processo civil, volume 02 - processo de conhecimento. 11ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 122.
[4] "Art. 319. Se o réu não contestar a ação, reputar-se-ão verdadeiros os fatos afirmados pelo autor".
[5] "Art. 277. (...) §2º. Deixando injustificadamente o réu de comparecer à audiência, reputar-se-ão verdadeiros os fatos alegados na petição inicial (art. 319), salvo se o contrário resultar da prova dos autos, proferindo o juiz, desde logo, a sentença".
[6] "Art. 330. O juiz conhecerá diretamente do pedido, proferindo sentença: (...) II- quando ocorrer a revelia (art. 319)".
[7] "Art. 322. Contra o revel que não tenha patrono nos autos, correrão os prazos independentemente de intimação, a partir da publicação de cada ato decisório. Parágrafo único O revel poderá intervir no processo em qualquer fase, recebendo-o no estado em que se encontrar".
[8] "Art. 302. Cabe também ao réu manifestar-se precisamente sobre os fatos narrados na petição inicial. Presumem-se verdadeiros os fatos não impugnados, salvo: I- se não for admissível, a seu respeito, a confissão; II- se a petição inicial não estiver acompanhada do instrumento público que a lei considerar da substância do ato; III- se estiverem em contradição com a defesa, considerada em seu conjunto. Parágrafo único. Esta regra, quanto ao ônus da impugnação especificada dos fatos, não se aplica ao advogado dativo, ao curador especial e ao órgão do Ministério Público".
[9] "Art. 320. A revelia não induz, contudo, o efeito mencionado no artigo antecedente: I- se, havendo pluralidade de réus, algum deles contestar a ação; II- se o litígio versar sobre direitos indisponíveis; III- se a petição inicial não estiver acompanhada do instrumento público, que a lei considere indispensável à prova do ato".
[10] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de processo civil, volume 02 - processo de conhecimento. 11ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 125.
[11] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de processo civil, volume 03 - execução. 5ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 405.
[12] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil, volume II – processo de execução e cumprimento de sentença, processo cautelar e tutela de urgência. 44ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 375. 
[13] SANTOS, Ernane Fidélis. Manual de direito processual civil, volume 01 - processo de conhecimento. 6ª edição. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 375.
[14] MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 31ª edição. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 73.
[15] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. Rev. e atual. Décio Balestero Aleixo e José Emmanuel Burle Filho. 40ª edição. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 110.
[16] MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 31ª edição. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 73.
[17] MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 31ª edição. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 73.
[18] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. Rev. e atual. Décio Balestero Aleixo e José Emmanuel Burle Filho. 40ª edição. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 110.
[19] MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Código de processo civil comentado artigo por artigo. 3ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 326.
[20] GONÇALVES, Marcus Vinícios Rios. Novo curso de direito processual civil, volume 01 - teoria geral e processo de conhecimento (1ª parte). 7ª edição. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 375.

5 comentários:

  1. Excelente artigo, digno de publicação!

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  2. Respostas
    1. Cara leitora Angela, agradeço pela visita a este Blog e pela agradável consideração.

      Atenciosamente,

      Augusto Jorge Cury.

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  3. Respostas
    1. Cara leitora Ane, agradeço pela visita a este Blog e pela agradável consideração.

      Atenciosamente,

      Augusto Jorge Cury.

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